quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Sobre a "Carta Aberta de Deneuve" publicada no Le Monde


Sobre a "Carta Aberta de Deneuve" publicada no Le Monde


          Uma das minhas preocupações quando falamos em Feminismo é que não devemos confundi-lo com Femismo. Feminismo busca direitos iguais entre homens e mulheres, enquanto o Femismo é o oposto de Machismo, buscando tanto poder e dominação quanto o Machismo busca. Em meus argumentos, essa diferenciação está sempre presente. A maioria das pessoas, porém, confunde os conceitos e está – legitimamente - ocupada demais com outras coisas para priorizar o entendimento desses fundamentos.
        Dito isso, gostaria de apresentar alguns pontos sobre a polêmica carta aberta publicada ontem no jornal Le Monde e que ganhou nortoriedade mundial por ser assinada por mulheres importantes, muitas das quais fizeram história defendendo a liberdade sexual feminina nas últimas décadas.
Eu só fiquei sabendo da polemica toda no final do dia de ontem porque estava ocupada com a vida e lidando com o machismo nosso de cada dia (teve todo um momento na minha tarde, que relatarei um dia desses, sobre como eu tentei comprar tintas pra minha parede e o vendedor ficou tentando me ensinar o que eu já sabia sobre pintura). Enfim, só tive acesso à Carta Aberta original em Francês hoje de manha, por isso não me posicionei antes – queria ler o original sem filtros (com um francês bem limitado, mas que deu conta da maioria das ideias) para não me contaminar com a avalanche de respostas emocionais apaixonadas (tanto à favor quanto contra) expressas em tantos sites de noticiais, blogs e redes sociais.
          Uma leitura rápida inicial, só pra ter uma ideia geral do texto, me deixou ligeiramente inquieta. Pra mim isso já é sinal de que algo não está bem, pois quando uma ideia te cativa verdadeiramente, ainda que deva ser encarada com criticidade, em geral não há duvidas ou sensações de moléstia. Uma segunda leitura, mais profunda e com a ajuda de um dicionário, me deixou incomodada.
          O texto começa com uma afirmação que resume boa parte da proposta das signatárias: “Estupro é crime, mas tentar seduzir alguém, mesmo de forma insistente ou desajeitada, não é – tampouco o cavalheirismo é uma agressão machista.” Eu já ouvi esse argumento centenas de vezes, muitas de pessoas que não tinham qualquer intencionalidade negativa, mas sim que tinham pensamentos culturalmente enraizados advindos do patriarcado em que todxs estamos inseridxs. Meu argumento sempre é: “enquanto for insistente, não é consentido e, portanto, é assédio”. Simples assim. Porém, na carta aberta o argumento é de que há uma diferença de intensidade ou grau entre um abuso sexual do tipo estupro e um homem “tocar no joelho” de uma mulher em seu local de trabalho ou “fazer comentários íntimos em uma reunião”. Uma amiga minha me encaminhou um link da resposta de um outro grupo feminista, também francês, à carta aberta. Nessa resposta, as signatárias contra-argumentam que “não se trata de uma diferença de grau, e sim de natureza”. Ainda é abuso porque trata-se de uma relação desigual de poder que se utiliza da sexualidade para dominar.
          Esse ponto me leva ao que a carta original refere defender, que seria a liberdade sexual da mulher, citando inclusive diversas ocasiões em que produções artísticas foram criticadas ou censuradas pelo que elas chamam de “puritanismo”. Eu, inclusive, concordei com parte disso porque tivemos o mesmo no Brasil há poucos meses atrás, com exposições sendo fechadas “pelo bem das crianças” (em geral as crianças brancas e de classe média/alta, porque as outras merecem pena de morte caso tropecem no diretor da firma sem querer, mas isso é outro post). Porém, na carta publicada no Le Monde, as signatárias dizem que esse puritanismo não só se excede aí, como também no que chamamos hoje de assédio e que a mulher pode gostar de ser objeto sexual de um homem. Ora, se a mulher quer ou não ser objeto sexual de alguém não é problema meu. Essa liberdade eu também defendo. Assim como defendo a mulher que deseja ser “bela, recatada e do lar” e a mulher que busca a “antimaternidade produtiva”. Eu defenderei sempre a pessoa fazer consigo mesma e com seu corpo o que ela bem entender. O que eu não defendo é que o outro possa fazer com o corpo da mulher o que ele bem entender (ou com o corpo de qualquer outro ser humano, seja ele mulher, homem, adulto, criança, adolescente ou idoso). Consentimento é chave, independente do seu gênero. Quer dizer, estaríamos realmente tendo essa conversa se um homem passasse a mão na bunda de outro homem no metrô? Pergunto assim porque na carta aberta, as signatárias minimalizam essa questão, dizendo que a mulher “pode buscar igualdade de salário e, ao mesmo tempo, não se sentir traumatizada por ser apalpada no metro”. Isso contribui para uma banalização do assédio e dá passe-livre para os homens tocarem sexualmente na mulher sem seu consentimento (não que eles já não tenham passe-livre – no Brasil, ejacular em mulher dentro do ônibus já foi considerado “não violência” por um juiz de São Paulo).
          Além dos pontos supracitados, tenho outro comentário sobre a mesma frase, no que se refere à mulher “não se sentir traumatizada”. Frequentemente vejo que as pessoas consideram que se sentir traumatizado é “mimimi”. Bom, eu tenho Doutorado em Psicologia, trabalhando com Estresse Pós-Traumatico, então tenho algum conhecimento pra compartilhar na área. Começo dizendo que eu aplaudo qualquer pessoa que passe por uma violação pessoal (seja assalto, sequestro, abuso sexual ou qualquer outra barbárie que o ser humano faz contra a própria espécie) e consiga ter resiliência para lidar com isso, encontrar estratégias de enfrentamento saudáveis e utilizar o episódio para crescer enquanto ser humano. Acho lindo. Admirável. Mas o mundo não é um moranguinho e passar por invasões como essa pode deixar sequelas emocionais para toda a vida - algumas que, sem o tratamento adequado, podem levar ao suicídio. Então, qualquer argumento em que me deixem implícito que “não se sentir traumatizado” é uma escolha sempre consciente e fácil, não é compatível com meus anos de estudo e experiência clínica. Logo, assédio pode ser trauma sim e é uma grotesca falta de empatia e alienação do mundo real ou das evidências científicas para pensar qualquer coisa diferente.
          E já que estou falando de trauma, vou me referir, à questão da vitimização da mulher. Na carta aberta, consta que o feminismo puritano de hoje em dia coloca a mulher em uma situação de vitimização eterna, deixando implícito um tom vexaminoso e fragilizado da vitimização. Ao ler, fica a sensação de que, na opinião das signatárias, dividimos o mundo entre mulheres vítimas fragilizadas e agressores demoníacos. Embora eu até observe que possa existir, de fato, um agressor demoníaco e uma vítima fragilizada, concordo que há diferentes nuances no meio do caminho - até porque o ser humano se reveza no papel de vítima e algoz em uma única vida,  em diferentes contextos, até ser capaz de romper com o ciclo. Mas é paradoxal o quanto as signatárias da carta aberta rejeitam essa dicotomia e, ao mesmo tempo, argumentam que essa vitimização é necessariamente uma fragilidade. A vitimização é um fato que pode ser tratado de diversas maneiras, mas de nenhuma forma define o valor de alguém, tampouco é vergonhosa. Nada na sua vida é vergonhoso, é simples reflexo do seu nível de maturidade e das circunstâncias da vida. Na carta em resposta do grupo feminista que citei anteriormente, elas dizem: “Somos vítimas de violência. Não nos envergonhamos. Estamos de pé. Entusiastas. Determinadas”. Esse trecho de resposta me dá uma sensação de desdramatização, de realismo. Ou seja: aceitemos os fatos. E vamos lidar com eles.
         Por fim, as signatárias da carta aberta criticam os movimentos do tipo #metoo compartilhados nas redes sociais, em que mulheres são incentivadas a denunciar publicamente seus abusadores. Elas dizem que isso os coloca numa posição negativa e que isso incomoda. Claro que incomoda, esteemos pedindo para que abram mão de privilégios, que mudem comportamentos e valores. Claro que isso incomoda. Mas isso também evolui, então lidem com isso. Elas também sugerem que os homens são acusados “sem direito de defesa” por fazerem algo que nem é tão grave assim. Chega a parecer que os homens é que são as vítimas. E alguns homens são vítimas. E existem mulheres que abusam. Claro que sim. Como diz uma colega minha, “não há o que não haja”. Mas sinceramente, se alguém rouba sua carteira no meio da rua, você vai dizer que o pobre coitado do assaltante nem tinha intenção de te machucar? Intenção é importante, claro, e tem muito assédio feito mais “por reflexo” ou mimetização cultural do que por intencionalidade perversa, mas isso de maneira nenhuma deixa de ser assédio, assim como os motivos por trás do furto da carteira não modificam a qualidade do crime.
          Dizer que assédio não é assédio é retroceder. Querer colocar panos quentes em uma situação insustentável, isso sim é vexaminoso. Mas, de novo, é simples resultado da maturidade de quem propõe a ideia. A beleza e o fardo da liberdade de expressão é essa: você pode olhar pra sua vida no final dela e pensar que disse coisas muito à frente do seu tempo, ou reler as próprias produções e torcer para haver uma próxima existência em que terá a oportunidade de refutar a si mesmx.

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