quinta-feira, 4 de março de 2010

Desfile mirim/show de horrores

Em dezembro do ano passado, tive a oportunidade de participar (por livre e espontânea pressão) de um concurso de modelos mirins, promovido em Porto Alegre. Uma priminha minha de 5 anos estava inscrita e eu acabei a acompanhando durante todo o processo.

Tiramos a menina da cama às 8h da manhã de DOMINGO (!) e fomos ao shopping, onde seria realizado o evento. Foi somente às 9h30 que conseguimos entrar no local, tamanha era a fila que tivemos que enfrentar. Eram 10h20 quando finalmente conseguimos pegar o kit do evento, que consistia em uma camiseta e um jornalzinho de todos os concursos de beleza realizados na cidade. Depois disso, mais uma hora na fila para o ensaio.

Chegamos ao ensaio e sentamos com mais 500 pais e mães emocionados. Atrás de nós, uma menina de 13 anos xingava a mãe por alguma coisa que ela havia lhe solicitado. "Ok", pensei, "artistas são temperamentais".

O ensaio consistia em o organizador do evento passar algumas instruções às crianças, como por onde elas deveriam entrar, onde parar e por onde sair. Depois ele chamou uma produtora (bom, ele apresentou como produtora, mas nós ficamos em dúvida se era produtora ou produtor) para discursar. Ela falou sobre como o mundo da moda era competitivo, como eles deveriam suportar as horas na fila sem reclamar e como a recompensa viria um dia. Disse que os pais tinham que esquecer todo o cansaço e ficarem felizes por seus filhos porque, afinal, todos ali (todos mesmo!) queriam ser modelos e, já que os pais não conseguiram, estavam projetando nos filhos aquela vontade.

Foi ali que eu quase me levantei e saí. Havia passado toda minha manhã de domingo numa fila para ouvir que aquelas crianças estavam ali para suprir as frustrações dos pais. Quando ninguém se levantou, eu achei que deveria ficar só por curiosidade de ver onde aquilo iria parar.

É claro que eu sei que existe esta tendência dos pais de empurrar aos filhos aquilo que eles não conseguiram realizar, mas é o tipo de coisa que ninguém fala em voz alta. Nunca pensei que isso seria dito de forma tão explícita quanto me foi passada naquele dia, nem que os pais fossem tão coniventes com esta idéia.

O "ensaio" acabou às 12h30 e eu nunca me senti tão inútil em toda a minha vida. Pra ter a impressão que estava fazendo algo interessante, comecei a anotar mentalmente minhas considerações. Fomos almoçar e aguardar o início do desfile, que iniciava às 14h30. Fomos espertos, desta vez! 13h30 estávamos na fila. Dessa vez só esperamos por 45 minutos. Perto de nós, uma mãe maquiava a filha de 3 anos(sendo que as regras do concurso não permitiam maquiagem!). Então entramos no salão e os pais deixaram seus filhos com os desconhecidos da indústria da moda e subiram para aguardar suas apresentações.

É claro que o desfile atrasou. Às 14h45, outro organizador do evento - aparentemente referência na área -, discursou sobre como, a partir daquele momento, os filhos daqueles pais seriam observados pelas 10 mais renomadas agências de modelos de Porto Alegre. Ele disse que aquelas seriam as pessoas que iriam dizer que seus filhos deveriam emagrecer, suportar a dor e sorrir quando estivessem chorando por dentro.

Minha esperança era que alguém, qualquer um, se levantasse dali e levasse o filho embora. Mas, aparentemente, o maior desejo daqueles pais, era que suas meninas morressem de anorexia e escondessem suas emoções. Eles haviam pago 800 reais por isso, não?

Como se tudo já não estivesse aterrorizante, o desfile começou. Um verdadeiro show de horrores. E foi ali que eu parei de culpar os pais - ou pelo menos alguns deles porque cheguei a conclusão de que alguns traços são realmente inatos e se manifestam muito cedo. Vi crianças ali que, com 5 anos, sabiam o que estavam fazendo, como se tivessem feito a vida toda. E adolescentes que,eu tive certeza, ameaçaram se atirar de um prédio se não participassem. Fiquei imaginando o que meu pai teria pensado se me visse desfilado em frente a todas aquelas pessoas, com 15 anos, usando uma calça justa, um scarpin altíssimo (quando as ordens da produção eram pra ser tênis) e aquela camiseta (que era pra ser larguinha e comum) levantada até abaixo do seio e amarrada para ficar justa, deixando toda a barriga à mostra. Haviam pais ali que pareciam muito orgulhoso. Deve ser por isso que meu pai nunca me inscreveu num concurso de modelos e vivia me mandando fazer curso de corte e costura.

Vejam bem, não sou moralista, tampouco hipócrita a ponto de dizer que nunca usei saia curta na adolescência, mas é diferente quando você quer - quase sem saber muito bem como - chamar atenção do "gatinho" da sala de aula. Ver aquelas meninas se exporem da maneira que eu vi, era manipulação sexual baixa e deprimente. E aprovada pelos pais!

Ainda assim, nem tudo está perdido. Também vi filhos mais maduros que os pais, que não queriam estar ali, que estavam claramente forçados. Estes, subiam na passarela aos prantos, viam os flashes e saiam correndo. Estes eu aplaudia. Mas ser criança, infelizmente, tem muitas desvantagens e uma delas é o fato de que, mesmo que você esteja em profundo desespero, sua mãe sempre pode lhe pegar no colo, sorrir, e subir na passarela pra lhe expor àquelas 10 pessoas de referência que, no futuro, vão lhe ensinar a não comer e não mostrar o que sente. Alguns pais simplesmente não aceitam que seus filhos não compartilham de seus sonhos.

Agora, vejam, isso é o que me faz pensar, as vezes, que nós, a raça humana, nunca deveríamos ter descido das árvores. Sim, porque não é natural, não é evolutivo, tampouco civilizado, uma mãe sorrir enquanto seu filho chora. Quando a cria está em sofrimento, a mãe também fica em sofrimento. Isto não é apenas a minha opinião, é um dado de realidade que pode ser encontrado em qualquer pesquisa sobre espécies animais. Duvido que a fêmea estivesse feliz ao ver a cria chorar quando éramos macaquinhos.

Houve um momento que eu encarei uma mãe do outro lado da passarela, sentada à minha frente. Ela chorava. Fiquei me perguntando o que ela estaria pensando. Será que ela tinha idéia que a anorexia é uma das psicopatologias que mais tem matado na atualidade? Será que ele estava sabendo que seu filho/filha teria um futuro banhado de "inas"? Anfetaminas, cocaínas, ritalinas? Que teria sua vida exposta sem dó nem piedade e que seu sofrimento seria explorado nos jornais e revistas? Não. Ela estava chorando porque seu filho/filha seria famoso, seria fotografado, ganharia dinheiro.

Porque é isso que funciona nesse mundo, não é? É mais lucrativo ser burro e bonito ao invés de ser apenas inteligente. Jogadores de futebol, modelos, atores. Todos eles ganham muito mais do que qualquer um de nós que escolhemos a ciência. Nossos ídolos não pensam. Infelizmente esta é a realidade que estamos encarando e é isso que nossas crianças estão tendo com que se deparar.

Eu só lamento que isto pareça ser uma tendência.

Nenhum comentário: